Rafael Campos
Após ter lançado “História da ‘consciência histórica’ ocidental
contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur”, em 2011 pela editora Autêntica,
livro inclusive citado por François Hartog em “Evidência da História: o que os historiadores
veem” (2011), José
Carlos Reis, professor da UFMG, retorna com esta nova obra que chegou ao
mercado editorial brasileiro pela editora FGV em 2012. É dividida em 2
partes: a primeira, trata sobre o tempo histórico. Este, que é matéria prima do
historiador, é trazido ao debate como sendo fruto de “representação
intelectual” e “representação cultural”. A segunda, discute sobre
História do pensamento histórico ocidental séculos XXI – XIX e pensamento
brasileiro.
O livro é de grande importância no atual cenário
historiográfico brasileiro, pois “é imensa a influência das filosofias da
história kantiana, hegeliana, nietzschiana, marxiana, benjaminiana,
foucaultiana, ricoeuriana sobre as ‘teorias da história’ dos últimos três
séculos” (p. 14) as quais são (re)avaliadas. E são destes paradigmas
epistemológicos e históricos que o livro vem tratar. Sua reflexão é uma espécie
de continuidade da outra obra, do mesmo autor, História & Teoria, com a qual faz
interface. Além disso, discute sobre historiografia, epistemologia, tempo
histórico. Todos esses, conceitos essenciais no métier do historiador.
A primeira parte, intitulada de O tempo histórico como “representação”, discute a (im)possibilidade(?)
da apreensão do ser do tempo pelo
discurso, e pela fala. Mas, o que seria o tempo? Esta seria uma primeira
questão norteadora. Reis articula o pensamento de vários autores e insinua uma
primeira definição: “seria a constante redução do ser ao nada, pela
descontinuação e sucessão do ser” (p. 27). Embora haja objeções quanto à
importância de se pensar o tempo, o autor demonstra que é por meio da
linguagem, ou fazendo uma “história do tempo”, ou seja, dos discursos
produzidos sobre ele, que é possível fazê-lo “aparecer”.
Assim, após fazer uma apologética da necessidade de se pensar
sobre esta categórica mor do historiador, adentramos no capítulo o tempo histórico como “representação
intelectual”, onde ele perpassa sobre as reflexões mais apuradas sobre o
tempo histórico. Sua incursão invade o pensamento dos Annales, Paul Ricoeur, e Reinhart Koselleck, “escola” e autores muito
influentes na própria carreira acadêmica do autor.
Segundo Reis, a dimensão do tempo para os historiadores
tradicionais é definida pela sua fixação do passado enquanto diferença com o
presente. Este é o aqui, aquele o acolá, determinado pelos eventos, e estes,
fixados nos documentos oficiais, âncoras da verdade. Por sua vez, os Annales se distanciam desta perspectiva
quando Bloch propõe o “método regressivo”: a partida do historiador é do presente
para o passado, e deste para o presente com respostas que este pediu aquele,
sem busca de idealizações do passado ou de quaisquer origens.
Adentrando a reflexão ricoeuriana, o tempo histórico é
melhor representado pelo tempo-calendário que é um terceiro tempo. Isto porque
entre o tempo do vivido humano, que é múltiplo e plural, e o tempo da física,
ou cosmológico, que é da ordem do quantificável, o tempo calendário seria a
mais adequada mediação entre essas duas perspectivas discordantes e
aparentemente contraditórias ou conflitantes. As sociedades e os homens
precisam de calendário para se situarem, se organizarem e nutrirem uma vida
social em comum, com eventos fundadores para totalizarem a experiência temporal
de uma comunidade/sociedade.
Reis prossegue destacando a negação feita por Koselleck
sobre a mediação adequada entre o tempo cósmico e o da consciência pelo tempo
calendário arguida por Ricoeur. As temporalidades são diversas, pois diversas
são as sociedades, portanto não harmonizáveis. Sem desprezar o calendário,
Koselleck pensa que o tempo histórico é pensado pelas categorias “campo de
experiência” e “horizonte de expectativa”. Os embates políticos, os anseios da
sociedade e de indivíduos, as mudanças provocadas por instituições e
organizações, e principalmente, a escrita da história, são formas discursivas
que se propõem a revelar o tempo histórico de cada época e cada sociedade. A
novidade em Koselleck é que de acordo com esta perspectiva “a história se torna
plenamente uma ‘ciência dos homens no tempo’ porque passa a incluir também o futuro (grifo meu) em sua perspectiva”
(p. 43).
Portanto, Reis conclui, o tempo histórico é representação
intelectual, pois é na escrita da história que ele aparece e se dá a conhecer pela
elaboração racional. E é representação cultural, pois esta elaboração é feita
dentro do seio social do historiador que traz em si uma temporalidade cultural,
vivida. O capítulo seguinte o tempo
histórico como “representação cultural” é uma retomada de reflexões
anteriores, já um tanto antigas e podem ser encontrada em sua obra gêmea e
outros trabalhos, portanto passemos adiante.
História do pensamento
histórico ocidental (XXI–XIX) e pensamento brasileiro é a segunda parte da obra. No
primeiro capítulo intitulado de A
historiografia pós-1989: pós-modernismo, representações e micronarrativas a
crítica de Reis é incisiva: a historiografia pós-queda do muro de Berlim é uma
prática que atende aos anseios do presente, ou seja, do mundo da mídia e da
vitória do capital. A identidade do mundo ocidental é assumidamente da lógica
de mercado. A vitória sobre do projeto capitalista ocidental sobre o Sorex foi
o marco que consagrou essa lógica de mercado como a unidade suprema de valores
absolutos. Seria o fim da história(?). Neste ínterim, a “história cultural” se
apresenta como uma história de entretenimento. Não é mais uma história crítica,
como foi a historiografia anterior, mas é uma prática da moda, que não tem
compromisso de crítica aos poderes vigentes e suas variadas formas de dominação
e poder. Esse mundo pós-1989 vive sobre o regime de historicidade presentista
impactado pelas novas formas de sentir e viver o tempo, dominado pelo carpe diem.
Como resultante desta nova forma de sentir a temporalidade,
Reis avalia o impacto desta Revolução de 1989 na historiografia e avalia a tese
de Hayden White sobre a História não se diferenciar epistemologicamente da
ficção. O historiador mais “objetivo”, metódico, não passa de um literato. Essa
tese é posta à prova a partir do pensamento de Chartier, Ricoeur e Ginzburg que
travam uma luta contra a “maquina de guerra cética”, digamos, talvez,
pós-moderna na hitoriografia.
De acordo com o autor, Ricoeur fará a História voltar ao
plano do real com a hipótese do texto e sua relação com o referente.
Respondendo a questão sobre o que é um texto, Ricoeur irá demonstrar a dimensão
de realidade quando o leitor se apropria do texto e retoma a sua própria
realidade reconfigurada pela tríplice mimese. Ginzburg irá defender sua posição
com uma exposição detalhada do “paradigma indiciário” ou “modelo
semiótico-médico”. A História é um saber que se pode evidenciar: é comparável
ao discurso médico, jurista. Sem provas não pode haver discurso histórico.
Reis é simpático desse “pensamento crítico da
pós-modernidade”, pois segundo ele, é admirável a posição desses autores que se
engajam na luta contra a hegemônica dominação do mundo pós-1989. O relativismo
é duramente combatido. A historiografia não pode deixar o mundo ocidental
apagar seus crimes por uma história conformada, não-combatente; e crítico, pois
aponta que os discursos ainda são produzidos no seio do mercado, almejando a venda
e o sucesso editorial, é um discurso que ainda carece de melhor solidez
epistemológica e conceitual.
O texto, publicado em 2009 pela revista Saeculum da UFPB A filosofia da história pós-moderna: Elias,
Foucault, Bourdieu e Thompson é polêmico. Provocará náuseas em leitores
assíduos de Foucault e Thompson. A tese máxima do autor é: todos os discursos desses
autores possuem uma filosofia da história embutida. Foucault e Elias produziram
textos que de uma forma e de outra deram forma a marcha da ocidentalização
mundial. “Pode-se entrar na civilização ocidental por dois caminhos: o micro
(Foucault) e o macro (Elias)” (p. 137). Hodiernamente Foucault é aclamado pela
sua escrita da história revolucionária. Paul Veyne o elogiou. A historiografia
brasileira o acolhe de braços abertos. Mas para Reis, não deveríamos exultar
tanto, caso sua hipótese esteja correta.
No texto A
historiografia brasileira sob o regime de historicidade presentista o
impacto desta nova forma de historiografia dominado pela lógica do mercado,
pela “história cultural” é analisado. Duas obras são dissecadas e criticadas: a
primeira, Campos de violência, de
Silvia Hunold Lara, de 1988; a segunda, Chica
da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito, de Júnia
Ferreira Furtado, de 2003. Segundo o autor, ambas as obras são paradigmáticas
para se pensar o impacto do regime presentista de historicidade brasileiro
influenciado pela vitória do capitalismo pós-1989. Esta historiografia é fruto
da nova teoria da história influenciada por Elias, Thompson e Foucault. Só há
“resistência”, que é consensual, dentro do interior do próprio capitalismo.
Prosseguindo, o autor retoma uma discussão dos anos 50/60 em História da história (1950/1960): história
e estruturalismo – Braudel versus
Lévi-Strauss o autor elabora uma retrospectiva da disputa ocorrida entre os
anos 50/60 entre história e etnologia/antropologia encabeçada por Lévi-Strauss
nos campos epistemológico, político e institucional. Lévi-Strauss dirigiu uma
forte crítica à história, influenciado pela recusa do tempo histórico
ocidental/europeu, afirmando que a estrutura é mais real e objetiva que o
transcurso do tempo. Ele é afável em relação à história e ao mesmo tempo
cético: é necessário que o métier do
historiador esteja junto ao do etnólogo, mas depois recusa essa possibilidade
afirmando que o trabalhado do historiador é ilusório, contraditório.
Conforme a tradição dos Annales que sempre respondeu às
críticas, Fernand Braudel responde afirmando que “é preciso evitar o dualismo
entre evento e estrutura” (p. 178), ou seja, não é necessário recorrer ao
evento enquanto última explicação para o problema das sociedades humanas, mas
sim à imbricação do tempo histórico com as redes estruturais: o tempo de longa
duração, que é o tempo da mudança lenta, que demora a passar, ou a prática da
“história estrutural”.
Com a História da
história (1900 – 1930): Henri Berr e a “nova história” dos Annales, Reis dá
continuidade a retrospectiva trazendo à tona a importância do pensamento, obra
e influências diversas de Henri Berr (1863-1954) o fundador da Révue de Synthèse Historique,
considerado um dos ancestrais da Escola dos Annales, devido às muitas marcas
epistemológicas (fez a primeira formulação da “história-problema”, antecipou o
conceito de “complexidade”, anunciou a proposta de “interdisciplinaridade” no
âmbito das pesquisas) que este imprimiu nos fundadores, embora não fosse um historiador.
O texto assume tom de protesto: se Braudel justifica o rompimento dos Annales com
Berr, Reis denuncia que a distância epistemológica assumida foi um desserviço à
historiografia, pois a vontade de “teorizar menos” afastou a história da reflexão
teórica muito bem enfatizada por Berr. Ao final do capítulo, Reis traz um
excerto pequeno traduzido da edição da Librairie Félix Alcan, Paris, de 1911,
onde Henri Berr fala sobre, erudição, filosofia da história e síntese erudita.
O penúltimo capítulo Os
conceitos de liberdade e necessidade em Marx (1848-1890) retoma uma
discussão sobre um filósofo atualíssimo, porém “esquecido”, segundo Reis. A
questão é sobre a liberdade: o que ela é? Podem os homens exercê-la plenamente?
Variando de filósofo para filósofo, de povo para povo, este conceito sofreu
mutações e é um dos mais discutidos na história da filosofia ocidental. O autor
percorre o pensamento de filósofos como Santo Agostinho, Kant, Hegel e Espinosa
e demonstra que a liberdade em Marx é condicionada. O livre arbítrio pela ótica
marxiana, é obtido através do agir em confluência condicional às situações
ordinárias que são regidas pelas forças estruturais. Quem é mais livre? “São
livres os indivíduos que constituem a classe dominante” (p. 252), mas mesmo
essa liberdade é limitada, pois regida socialmente e limitada pela
exterioridade da vida material.
Comentário final:
por um pensamento brasileiro
é crítico e contundente. Rendeu inspiração para o título da presente resenha. Aqui
o autor reflete sobre a importância de se pensar sobre identidade nacional.
Depois do “puxão de orelha” de Evaldo Cabral de Mello, Reis irá reafirmar a
necessidade da discussão temática. Perpassando farta bibliografia (como sempre)
e autores como Herder, Collingwood, Isaiah Berlin, Gellner e Hegel, o autor
sustenta a ideia de que é urgente a discussão sobre o(s) caráter(s) da(s)
identidade(s) brasileira(s). Nossa tarefa mais urgente seria a descolonização
do pensamento: pensar nossa história/historiografia a partir de nossas próprias
matrizes, paradigmas e expressões intelectuais, sejam artísticas ou
filosóficas.
“Quem são os filósofos brasileiros?” (p. 266). A pergunta é
incisiva. Os filósofos europeus não dependem de nenhum paradigma brasileiro
para formularem suas questões. Mas “no Brasil, a ‘vida do espírito’ tem sido
tão miserável quanto a vida material! Os estudos filosóficos são completamente
‘aculturados’ (dominados): os europeus não precisam de nós para comentar e
compreender seus textos! […] O Brasil precisa de nossos recursos intelectuais,
de nossas energias mentais, para se pensar, se conhecer, se avaliar, se
resolver” (p. 266). O autor nos propõe pensarmos o Brasil a partir de nossos
próprios dilemas e modelos e tomarmos o pensamento gringo para criticá-lo, articulá-lo
ao nosso e não repetirmos sem críticas. Como disse Hegel: “pensar a vida [a
partir do Brasil], eis a tarefa”.
REFERÊNCIAS
REIS,
José Carlos. Teoria & história:
tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento
brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
HARTOG, Francois. Evidência da
História: o que os historiadores veem.
1ª edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
REIS, José Carlos. História da “consciência histórica”
ocidental contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
REIS, José Carlos. Wilhelm Dilthey e a autonomia das ciências
histórico-sociais. Londrina:
Eduel, 2003.