sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Resenha: Teoria & história: tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro.



Rafael Campos


Após ter lançado “História da ‘consciência histórica’ ocidental contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur”, em 2011 pela editora Autêntica, livro inclusive citado por François Hartog em “Evidência da História: o que os historiadores veem” (2011), José Carlos Reis, professor da UFMG, retorna com  esta nova obra que chegou ao mercado editorial brasileiro pela editora FGV em 2012. É dividida em 2 partes: a primeira, trata sobre o tempo histórico. Este, que é matéria prima do historiador, é trazido ao debate como sendo fruto de “representação intelectual” e “representação cultural”. A segunda, discute sobre História do pensamento histórico ocidental séculos XXI – XIX e pensamento brasileiro.
O livro é de grande importância no atual cenário historiográfico brasileiro, pois “é imensa a influência das filosofias da história kantiana, hegeliana, nietzschiana, marxiana, benjaminiana, foucaultiana, ricoeuriana sobre as ‘teorias da história’ dos últimos três séculos” (p. 14) as quais são (re)avaliadas. E são destes paradigmas epistemológicos e históricos que o livro vem tratar. Sua reflexão é uma espécie de continuidade da outra obra, do mesmo autor, História & Teoria, com a qual faz interface. Além disso, discute sobre historiografia, epistemologia, tempo histórico. Todos esses, conceitos essenciais no métier do historiador.
A primeira parte, intitulada de O tempo histórico como “representação”, discute a (im)possibilidade(?) da apreensão do ser do tempo pelo discurso, e pela fala. Mas, o que seria o tempo? Esta seria uma primeira questão norteadora. Reis articula o pensamento de vários autores e insinua uma primeira definição: “seria a constante redução do ser ao nada, pela descontinuação e sucessão do ser” (p. 27). Embora haja objeções quanto à importância de se pensar o tempo, o autor demonstra que é por meio da linguagem, ou fazendo uma “história do tempo”, ou seja, dos discursos produzidos sobre ele, que é possível fazê-lo “aparecer”.
Assim, após fazer uma apologética da necessidade de se pensar sobre esta categórica mor do historiador, adentramos no capítulo o tempo histórico como “representação intelectual”, onde ele perpassa sobre as reflexões mais apuradas sobre o tempo histórico. Sua incursão invade o pensamento dos Annales, Paul Ricoeur, e Reinhart Koselleck, “escola” e autores muito influentes na própria carreira acadêmica do autor.
Segundo Reis, a dimensão do tempo para os historiadores tradicionais é definida pela sua fixação do passado enquanto diferença com o presente. Este é o aqui, aquele o acolá, determinado pelos eventos, e estes, fixados nos documentos oficiais, âncoras da verdade. Por sua vez, os Annales se distanciam desta perspectiva quando Bloch propõe o “método regressivo”: a partida do historiador é do presente para o passado, e deste para o presente com respostas que este pediu aquele, sem busca de idealizações do passado ou de quaisquer origens.
Adentrando a reflexão ricoeuriana, o tempo histórico é melhor representado pelo tempo-calendário que é um terceiro tempo. Isto porque entre o tempo do vivido humano, que é múltiplo e plural, e o tempo da física, ou cosmológico, que é da ordem do quantificável, o tempo calendário seria a mais adequada mediação entre essas duas perspectivas discordantes e aparentemente contraditórias ou conflitantes. As sociedades e os homens precisam de calendário para se situarem, se organizarem e nutrirem uma vida social em comum, com eventos fundadores para totalizarem a experiência temporal de uma comunidade/sociedade.
Reis prossegue destacando a negação feita por Koselleck sobre a mediação adequada entre o tempo cósmico e o da consciência pelo tempo calendário arguida por Ricoeur. As temporalidades são diversas, pois diversas são as sociedades, portanto não harmonizáveis. Sem desprezar o calendário, Koselleck pensa que o tempo histórico é pensado pelas categorias “campo de experiência” e “horizonte de expectativa”. Os embates políticos, os anseios da sociedade e de indivíduos, as mudanças provocadas por instituições e organizações, e principalmente, a escrita da história, são formas discursivas que se propõem a revelar o tempo histórico de cada época e cada sociedade. A novidade em Koselleck é que de acordo com esta perspectiva “a história se torna plenamente uma ‘ciência dos homens no tempo’ porque passa a incluir também o futuro (grifo meu) em sua perspectiva” (p. 43).
Portanto, Reis conclui, o tempo histórico é representação intelectual, pois é na escrita da história que ele aparece e se dá a conhecer pela elaboração racional. E é representação cultural, pois esta elaboração é feita dentro do seio social do historiador que traz em si uma temporalidade cultural, vivida. O capítulo seguinte o tempo histórico como “representação cultural” é uma retomada de reflexões anteriores, já um tanto antigas e podem ser encontrada em sua obra gêmea e outros trabalhos, portanto passemos adiante.
História do pensamento histórico ocidental (XXI–XIX) e pensamento brasileiro é a segunda parte da obra. No primeiro capítulo intitulado de A historiografia pós-1989: pós-modernismo, representações e micronarrativas a crítica de Reis é incisiva: a historiografia pós-queda do muro de Berlim é uma prática que atende aos anseios do presente, ou seja, do mundo da mídia e da vitória do capital. A identidade do mundo ocidental é assumidamente da lógica de mercado. A vitória sobre do projeto capitalista ocidental sobre o Sorex foi o marco que consagrou essa lógica de mercado como a unidade suprema de valores absolutos. Seria o fim da história(?). Neste ínterim, a “história cultural” se apresenta como uma história de entretenimento. Não é mais uma história crítica, como foi a historiografia anterior, mas é uma prática da moda, que não tem compromisso de crítica aos poderes vigentes e suas variadas formas de dominação e poder. Esse mundo pós-1989 vive sobre o regime de historicidade presentista impactado pelas novas formas de sentir e viver o tempo, dominado pelo carpe diem.
Como resultante desta nova forma de sentir a temporalidade, Reis avalia o impacto desta Revolução de 1989 na historiografia e avalia a tese de Hayden White sobre a História não se diferenciar epistemologicamente da ficção. O historiador mais “objetivo”, metódico, não passa de um literato. Essa tese é posta à prova a partir do pensamento de Chartier, Ricoeur e Ginzburg que travam uma luta contra a “maquina de guerra cética”, digamos, talvez, pós-moderna na hitoriografia.
De acordo com o autor, Ricoeur fará a História voltar ao plano do real com a hipótese do texto e sua relação com o referente. Respondendo a questão sobre o que é um texto, Ricoeur irá demonstrar a dimensão de realidade quando o leitor se apropria do texto e retoma a sua própria realidade reconfigurada pela tríplice mimese. Ginzburg irá defender sua posição com uma exposição detalhada do “paradigma indiciário” ou “modelo semiótico-médico”. A História é um saber que se pode evidenciar: é comparável ao discurso médico, jurista. Sem provas não pode haver discurso histórico.
Reis é simpático desse “pensamento crítico da pós-modernidade”, pois segundo ele, é admirável a posição desses autores que se engajam na luta contra a hegemônica dominação do mundo pós-1989. O relativismo é duramente combatido. A historiografia não pode deixar o mundo ocidental apagar seus crimes por uma história conformada, não-combatente; e crítico, pois aponta que os discursos ainda são produzidos no seio do mercado, almejando a venda e o sucesso editorial, é um discurso que ainda carece de melhor solidez epistemológica e conceitual.
O texto, publicado em 2009 pela revista Saeculum da UFPB A filosofia da história pós-moderna: Elias, Foucault, Bourdieu e Thompson é polêmico. Provocará náuseas em leitores assíduos de Foucault e Thompson. A tese máxima do autor é: todos os discursos desses autores possuem uma filosofia da história embutida. Foucault e Elias produziram textos que de uma forma e de outra deram forma a marcha da ocidentalização mundial. “Pode-se entrar na civilização ocidental por dois caminhos: o micro (Foucault) e o macro (Elias)” (p. 137). Hodiernamente Foucault é aclamado pela sua escrita da história revolucionária. Paul Veyne o elogiou. A historiografia brasileira o acolhe de braços abertos. Mas para Reis, não deveríamos exultar tanto, caso sua hipótese esteja correta.
No texto A historiografia brasileira sob o regime de historicidade presentista o impacto desta nova forma de historiografia dominado pela lógica do mercado, pela “história cultural” é analisado. Duas obras são dissecadas e criticadas: a primeira, Campos de violência, de Silvia Hunold Lara, de 1988; a segunda, Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito, de Júnia Ferreira Furtado, de 2003. Segundo o autor, ambas as obras são paradigmáticas para se pensar o impacto do regime presentista de historicidade brasileiro influenciado pela vitória do capitalismo pós-1989. Esta historiografia é fruto da nova teoria da história influenciada por Elias, Thompson e Foucault. Só há “resistência”, que é consensual, dentro do interior do próprio capitalismo.
Prosseguindo, o autor retoma uma discussão dos anos 50/60 em História da história (1950/1960): história e estruturalismo – Braudel versus Lévi-Strauss o autor elabora uma retrospectiva da disputa ocorrida entre os anos 50/60 entre história e etnologia/antropologia encabeçada por Lévi-Strauss nos campos epistemológico, político e institucional. Lévi-Strauss dirigiu uma forte crítica à história, influenciado pela recusa do tempo histórico ocidental/europeu, afirmando que a estrutura é mais real e objetiva que o transcurso do tempo. Ele é afável em relação à história e ao mesmo tempo cético: é necessário que o métier do historiador esteja junto ao do etnólogo, mas depois recusa essa possibilidade afirmando que o trabalhado do historiador é ilusório, contraditório.
Conforme a tradição dos Annales que sempre respondeu às críticas, Fernand Braudel responde afirmando que “é preciso evitar o dualismo entre evento e estrutura” (p. 178), ou seja, não é necessário recorrer ao evento enquanto última explicação para o problema das sociedades humanas, mas sim à imbricação do tempo histórico com as redes estruturais: o tempo de longa duração, que é o tempo da mudança lenta, que demora a passar, ou a prática da “história estrutural”.
Com a História da história (1900 – 1930): Henri Berr e a “nova história” dos Annales, Reis dá continuidade a retrospectiva trazendo à tona a importância do pensamento, obra e influências diversas de Henri Berr (1863-1954) o fundador da Révue de Synthèse Historique, considerado um dos ancestrais da Escola dos Annales, devido às muitas marcas epistemológicas (fez a primeira formulação da “história-problema”, antecipou o conceito de “complexidade”, anunciou a proposta de “interdisciplinaridade” no âmbito das pesquisas) que este imprimiu nos fundadores, embora não fosse um historiador. O texto assume tom de protesto: se Braudel justifica o rompimento dos Annales com Berr, Reis denuncia que a distância epistemológica assumida foi um desserviço à historiografia, pois a vontade de “teorizar menos” afastou a história da reflexão teórica muito bem enfatizada por Berr. Ao final do capítulo, Reis traz um excerto pequeno traduzido da edição da Librairie Félix Alcan, Paris, de 1911, onde Henri Berr fala sobre, erudição, filosofia da história e síntese erudita.
O penúltimo capítulo Os conceitos de liberdade e necessidade em Marx (1848-1890) retoma uma discussão sobre um filósofo atualíssimo, porém “esquecido”, segundo Reis. A questão é sobre a liberdade: o que ela é? Podem os homens exercê-la plenamente? Variando de filósofo para filósofo, de povo para povo, este conceito sofreu mutações e é um dos mais discutidos na história da filosofia ocidental. O autor percorre o pensamento de filósofos como Santo Agostinho, Kant, Hegel e Espinosa e demonstra que a liberdade em Marx é condicionada. O livre arbítrio pela ótica marxiana, é obtido através do agir em confluência condicional às situações ordinárias que são regidas pelas forças estruturais. Quem é mais livre? “São livres os indivíduos que constituem a classe dominante” (p. 252), mas mesmo essa liberdade é limitada, pois regida socialmente e limitada pela exterioridade da vida material.
Comentário final: por um pensamento brasileiro é crítico e contundente. Rendeu inspiração para o título da presente resenha. Aqui o autor reflete sobre a importância de se pensar sobre identidade nacional. Depois do “puxão de orelha” de Evaldo Cabral de Mello, Reis irá reafirmar a necessidade da discussão temática. Perpassando farta bibliografia (como sempre) e autores como Herder, Collingwood, Isaiah Berlin, Gellner e Hegel, o autor sustenta a ideia de que é urgente a discussão sobre o(s) caráter(s) da(s) identidade(s) brasileira(s). Nossa tarefa mais urgente seria a descolonização do pensamento: pensar nossa história/historiografia a partir de nossas próprias matrizes, paradigmas e expressões intelectuais, sejam artísticas ou filosóficas.
“Quem são os filósofos brasileiros?” (p. 266). A pergunta é incisiva. Os filósofos europeus não dependem de nenhum paradigma brasileiro para formularem suas questões. Mas “no Brasil, a ‘vida do espírito’ tem sido tão miserável quanto a vida material! Os estudos filosóficos são completamente ‘aculturados’ (dominados): os europeus não precisam de nós para comentar e compreender seus textos! […] O Brasil precisa de nossos recursos intelectuais, de nossas energias mentais, para se pensar, se conhecer, se avaliar, se resolver” (p. 266). O autor nos propõe pensarmos o Brasil a partir de nossos próprios dilemas e modelos e tomarmos o pensamento gringo para criticá-lo, articulá-lo ao nosso e não repetirmos sem críticas. Como disse Hegel: “pensar a vida [a partir do Brasil], eis a tarefa”.

REFERÊNCIAS

REIS, José Carlos. Teoria & história: tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
HARTOG, Francois. Evidência da História: o que os historiadores veem. 1ª edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
REIS, José Carlos. História da “consciência histórica” ocidental contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
REIS, José Carlos. Wilhelm Dilthey e a autonomia das ciências histórico-sociais. Londrina: Eduel, 2003.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Resenha do livro "Introdução à Teologia" - Justo González

Rafael Campos


Para mim é primordial apresentar o autor: Justo L. González é metodista. "Nascido em Cuba e radicado nos Estados Unidos, é graduado pelo Seminário Unido de Cuba, com mestrado e doutorado pela Universidade Yale. Tem experiência de ensino de história da igreja em diversos seminários da América Central e dos Estados Unidos, destacando-se ainda por sua prolífica produção literária."[1]
Parece ser de praxe entre teólogos escrever introduções à teologia. Cada um à sua moda mas a receita é a mesma: selecionar autores que lhe interessam mais, que se aproximam mais de sua tradição doutrinária e comentar sua obra; escamotear outros (“hereges”), pois o discurso que não dá voz, tem automaticamente a função de deslegitimar; e por fim, dizer que não quer encerrar o assunto. Mas já que são tão parecidas, por que resenhar uma obra como essa então? Alguns fatos me chamaram atenção nesta em particular. É o que destaco doravante.
Um livro de pouco mais de 260 páginas que se propõe a discursar sobre Teologia, só poderia levar o nome de “Introdução” à mesma. No geral aborda as clássicas temáticas que a maioria das obras de introdução à teologia, as que já li, trata. São sete capítulos que traçam discussões a partir das respectivas perguntas: O que é a teologia?; Quem é Deus?; O que é o mundo? Quem somos?; Quem é Jesus Cristo?; O que é a Igreja?; Como vive a Igreja; Qual é a nossa Esperança?.
Sobre a linguagem. Gosto da maneira como González escreve: é lúcido, opera com conceitos difíceis com fluidez e dinâmica. Diferente de muitos conceitos teológicos, seu texto não é hermético. Com parágrafos equilibrados, o leitor não é castigado com divagações muito extensas. Para quem não desfruta de muito tempo para uma leitura rápida da obra completa, a forma do livro contribui na medida em que o leitor pode sempre encerrar a leitura no fim de um tópico, que em geral são breves, devido à ótima organização do texto. Cada tópico encerra um assunto o que facilita a memorização.
Teólogos desconhecidos. Atraiu-me a facilidade com a qual González traz ao diálogo vários pensadores e consegue elucidar bem suas ideias. Cada concepção teológica discutida ou posta em debate é analisada sob a luz de uma perspectiva dialeticamente histórica e processual. Faz questão de destacar que houve períodos históricos em que outras comunidades de cristãos pensaram acerca de coisas como ortodoxas que não pensaríamos hoje em dia. Cada época elegeu o pensamento de alguém enquanto base para categorizar a ortodoxia. O debate de ideias promove uma repaginação na história da teologia que González faz com maestria chamando alguns nomes ao debate que não são tão comuns, ou talvez, sejam caros demais à “ortodoxia”.
Sobre o princípio da autoridade. Incomoda-me muito o fato de que muitas das obras de González (que possuo), assim como esta, não possuem referências bibliográficas ou notas de rodapé. É claro que ao longo da obra a bagagem e domínio de conteúdo se fazem muito presentes e são inegáveis, mas no mundo moderno é bastante desconfortável ler livros que não trazem notas ou bibliografia utilizada. Ao que qualquer um pode retrucar afirmando que ele é pesquisador, professor doutor com vasta experiência, autor de vários livros, etc. Porém penso que uma coisa não pode encobrir a outra. E o exemplo abaixo elucida o motivo.
O autor tem uma capacidade belíssima de sintetizar o pensamento de vários pensadores, o que demonstra seu domínio sobre o conteúdo e muita habilidade teórica e conceitual. No entanto González esbarrou em alguns erros que acredito, não poderiam ter sido cometidos por ele. No capítulo Quem é Deus? que vai tratar sobre vários aspectos da discussão sobre a pessoa divina, e nele, alguns os argumentos sobre como é possível o conhecimento de Deus são postos a prova, o que é bastante admirável, ou seja, o autor não tem medo de expor cada fraqueza dos argumentos apologéticos, e os põe à prova mostrando todos os seus aspectos negativos, o que é louvável.
Porém ao abordar um tópico intitulado “As provas da existência de Deus”, no item “a” e “c”, González analisa as famosas “cinco vias” de Tomás de Aquino e comete um erro intolerável. Ele resumo o famoso “argumento kalam” (sem usa esse nome) na página 71: tudo quando existe há de ter uma causa e triunfante pergunta se mesmo Deus sendo a primeira causa, Ele mesmo não haveria de ter uma. Atualmente ninguém sustenta a premissa de que tudo que existe tem de ter uma causa, mas sim tudo o que COMEÇA A EXISTIR possui uma causa. Há uma diferença catastrófica entre ambas as premissas. Em seu livro “36 argumentos para a existência de Deus” Rebecca Goldstein foi duramente criticada porque usou este mesmo espantalho para criticar o argumento kalam. Mas um teólogo profissional não deveria cair neste amadorismo.
Outro apontamento não muito acurado foi posto no fim da mesma página. Dentro do tópico “Os limites de tais provas” o autor afirma sem discutir muito a questão que “tais argumentos […] não provam necessariamente que esse algo seja o Deus da fé cristã” (p. 71). A declaração quis demonstrar os limites dos argumentos apologéticos para que o leitor não caia no otimismo tolo acerca deles. Estou de pleno acordo com a declaração, mas não no contexto em que ela se apresenta, pois González não leva em conta que atualmente os assim chamados “apologistas” cristãos não usam esse ou aquele argumento isoladamente para demonstrar a racionalidade da fé cristã, ou seja, para demonstrar que a fé cristão não é fideísmo, mas os utilizam em conjunto, como força coletiva que dão suporte para uma conclusão maior: que é mais racional crer na existência do Deus Cristão. Esta observação é importantíssima neste caso.
Estes dois problemas que identifiquei na obra, em uma leitura bastante apressada, confesso, me fizeram vez por outra duvidar se outras leituras realizadas pelo autor também estão corretas, principalmente quando me deparei com sua interpretação do argumento seguido de réplica do “argumento ontológico” de Anselmo, o qual não estudei com mais acuidade e portanto não tenho domínio.
Mas de forma geral considero o livro uma boa obra. Prosseguindo a leitura gostei do movimento dialético feito durante todo o livro: sobre cada posição teológica o autor demonstra vários pontos de vista sem necessariamente demonizar um ou outro ou tomar partido. Mas como todo humano, não é impassível e vez por outra declara sua simpatia por este ou aquele sistema, como neste belíssimo trecho no qual discorre sobre um modelo de um teólogo calvinista, Jerônimo Zanchi, acerca da soberania divina e liberdade humana:
Segundo Zanchi, visto que Deus é onipotente e onisciente – quer dizer, pode tudo e sabe tudo – Deus sabe e determina tudo o que há de acontecer, e não existe tal coisa como liberdade humana. O que Zanchi fez com tal argumento é pretender que Deus tem que se ajustar a nossa compreensão da onisciência e da onipotência. Mas o certo é que, se Deus é de verdade onipotente, Ele não tem o porquê de se ajustar aos argumentos de Zanchi nem de qualquer outro teólogos. Se Deus é verdadeiramente onisciente, saberá como permitir que exista a liberdade humana, ainda quando o “sistema” de Zanchi não dê lugar a ela (p. 19). 
Por ter sido agraciado pelo conhecimento de sistemas e pontos de vista em teologia que ainda não havia tido acesso e que essa obra, de maneira muito clara e didática, trouxe-me o conhecimento, recomendo-a. Enfim, comprem-na. 

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[1] Trecho retirado do site da editora Vida Nova.