quarta-feira, 5 de novembro de 2014

É bom ser vida loka?

Reflexões sobre o livro "Pé na estrada" de Jack Keroauc

    A liberdade é umas dessas palavras de uso comum, mas que esconde inúmeras discussões a respeito de sua efetiva definição. Afinal, o que realmente é ser livre?
    No final da década de 50, os norte-americanos da geração beat procuravam uma liberdade plena. Os artistas desses movimento eram nômades e buscavam uma vida que eliminasse qualquer padrão ou norma social. Posteriormente esse grupo, originaria um movimento em massa, os hippies.
     Uma das obras mais conhecida desse movimento foi On the Road (Pé na estrada) de Jack Keroauc, lançado  em 1957. O livro descreve as diversas viagens de Sal Paradise. Inspirado pelo seu amigo Dean Moriarty, Sal busca uma vida espontânea e livre nas estradas através dos Estados Unidos e México.   
     A linguagem do livro segue uma prosa espontânea, com um fluxo de consciência efervescente, que oscila entre pequenos parágrafos e gigantescos. A estrada se transforma em uma busca espiritual por um entendimento mais profundo sobre o mundo que cerca nosso narrador.
     Dean é o personagem mais importante da trama e transformou Neal Cassady, fonte de inspiração do personagem, em um herói dos jovens da época, que colocavam a mochila nas costas e botava o pé na estrada.  
    Sal possui uma verdadeira fascinação pelo estilo e comportamento completamente espontâneo do amigo. Irresponsável, Dean ignora a lei, as convenções sociais e as outras pessoas, em sua busca, pela América do Norte, de novas experiências e seu pai, perdido em uma das esquinas da estrada.
     Ao longo do livro, é impossível não se incomodar com as consequências do comportamento desse personagem, sua liberdade se transforma em insensibilidade e causa do sofrimento dos outros. Enquanto isso, Sal parece ignorar a rejeição dos antigos amigos de Dean e o defende por ser um espírito livre. 
     Observamos que Sal é um jovem que busca a estrada como forma de auto-conhecimento, mas, ao contrário de Moriarty, leva uma vida relativamente pacata fora dela. Na verdade, apenas em momentos de dúvidas ou tédio, ele busca a estrada como um meio de escapar do inevitável aprisionamento ao estudo, trabalho ou casamento. Ao mesmo tempo, que busca achar um lugar a que pertença.  
      No fim, cabe questionar se a liberdade é realmente algo tão sedutor, quanto Sal e nós mesmos gostaríamos.   

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Mulheres, bullying e o papel da escola.

    Na minha época de escola, sempre participei dos eventos da Francisca Martiniano da Rocha, como as quadrilhas de São João, as Gincanas, o dia do Estudante e outras datas festivas. Além disso, lembro-me com carinho dos projetos de Belinha, Zé Walter e Rosilda para a Feira de Ciências.
     Aliás, feira de ciências designa uma exposição pública de projetos científicos desenvolvidos pelos estudantes. Por causa disso, logo foi necessário mudar o nome do evento, visto que era impossível inclui todas as matérias dentro dessa definição. 
   Em 2001, surgiu o primeiro AMACC (Amostra de Arte, Cultura e Ciências) da nossa escola. Portanto, o objetivo apenas foi ampliado, passou-se para uma exposição pública de projetos artísticos, culturais e científicos desenvolvidos na sala de aula para a comunidade escolar. Assim, o AMACC deveria servir como elemento importante para a construção de cidadãos críticos e conscientes de seu papel na sociedade. 
     Devido a situação atual da nossa escola, acredito que a igualdade e o respeito entre os indivíduos deveria ser um dos valores implícitos em todos os projetos. Na verdade, a escola tem por obrigação discutir amplamente a questão da privacidade e respeito pelo próprio corpo. No entanto,  ao contrário do esperado, o que notamos é a exploração do corpo feminino (tema discutido em texto anterior).
    Em uma sociedade como a nossa, a culpa acaba recaindo nas próprias vítimas, que sequer tinham consciência da ideologia machista que perpassava toda aquela apresentação. Na verdade, conversei com uma dessas alunas e quando questionei se o propósito da cantora que elas tentavam imitar não era exposição do corpo da mulher, ela alegou confusamente que poderia ser, mas o objetivo delas era apenas apresentar uma forma de cultura.
    Infelizmente, a aluna da foto, que serviu apenas para ilustrar o fato, vem sofrendo bullying por causa disso. Nenhuma pessoa aconselhou para que elas não dançassem, ninguém explicou para essa jovem a ideologia que ela representava naquela noite, portanto como é possível tantas pessoas julgá-la?  Não achem que estão defendendo os direitos da mulheres quando ofendem essa criança, pelo contrário, tratá-la dessa forma, é vergonhoso e machista e tais atitudes devem ser combatidas.
     Repensem ofensas como “vadia” e “puta, o que isso significa? Toda mulher tem o direito a seu próprio corpo e não deve ser julgada por isso, o que questionei é o machismo implícito em praticamente todas as apresentações. 
     Espero que essas jovens mulheres possam se desenvolver em um ambiente saudável e, em minha opinião, foi errado (e será sempre) colocar menores de idade dançando músicas que transformem a mulher em mero objeto e incentivem o uso de álcool ou qualquer tipo de drogas.  
    Peço, sinceramente, minhas desculpas mais sinceras a essa jovem e a sua família, pelos transtornos causados involuntariamente. Para os machistas que ofendem a minha pessoa ou a essa aluna, devo dizer que valemos muito mais que um shortinho curto e o fato de conseguir ou não rebolar. Minha esperança é que minhas reflexões possam valer muito mais que um processo e ajude nossa escola a inspirar essa jovens mulheres, façam elas perceber o papel brilhante que elas podem ter para a transformação de uma sociedade mais igualitária e justa.


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A cultura do machismo de Lagoa Seca

     A arte é um conceito difícil de ser definido, dentre as possibilidades estéticas, não poderia imaginar que garotas de 12 anos com shorts curtíssimos e barrigas de fora, dançando ao som de Anitta (“Agora eu vou me vingar: menina má. Vou provocar, vou descer e vou instigar”), se enquadraria nesse grupo.
     Não muito diferente do que aconteceu na abertura da Amostra de Arte, Ciência e Cultura da Escola Francisca Martiniano da Rocha, pouco mais de um ano atrás, nossa cidade virou notícia pela apresentação da Banda Fanfarra Ypuarana. Se enquanto arte, a dança se expressa através dos signos de movimento, o que esse tipo de representação simboliza sobre a nossa identidade enquanto lagoasequenses?
     Inicialmente, cabe percebermos que os grupos de danças da Amostra tinham como membros quase que exclusivamente mulheres (ou crianças?) semi-nuas com movimentos que insinuavam claramente o ato sexual, dançando ao som de músicas de Funk e Swingueira, repetidas a exaustão, com temas como sexo, bebida e dinheiro.  
     É inevitável perceber o machismo representando nas apresentações, a dança, como arte, fica ofuscada pela clara tentativa de chamar a atenção do olhar masculino, que transforma a mulher em mero elemento de entretenimento sexual.
     Espera-se que uma escola promova a igualdade dos gêneros e mostre a uma jovem mulher que ela pode ter as mesmas oportunidades que um homem, que possibilite uma visão crítica e ampla do mundo para um verdadeiro empoderamento da mulher na nossa sociedade
    Ao contrário do esperado, o que estamos ensinando é que cabe a mulher o papel de objeto sexual, portanto seu corpo dever servir de entretenimento para os homens, visto que sua existência toda serve unicamente para encontrar um macho que a sustente e o qual ela deve obedecer. Pelo menos é isso que é dito nas músicas dançadas por essas adolescentes, que insinuavam a troca de favores sexuais pelo status social do rapaz, seu carro e dinheiro.
    Afinal, o que essa apresentação consegue além de espalhar a ideologia de que as mulheres valem unicamente pelo seu corpo?  Não é sem motivos, que quando uma dessas estudantes foi ao centro, não foram os passos de dança que foram avaliados, mas o seu peso e, por isso, ela foi insultada.
   Enquanto a Vogue Kids brasileira foi obrigada a retirar das bancas sua edição de setembro pela sexualização da imagem de modelos infantis e adolescentes, Lagoa Seca parece achar normal que jovens estudantes desçam até o chão enquanto uma cantora de Funk convida “Eu sei que você tá querendo”. 
     Uma determinada aluna disse que “caráter não é definido por short curto”, não poderia ser mais verdade, mas e quando esse short parece ser a única coisa que deveria ser mostrada?

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Comentário do Livro: "Evidência da História: o que os Historiadores Veem" - François Hartog



Por uma descolonização do pensamento, ou o orgulho tupiniquim

Rafael Campos

Numa obra recém-lançada de um autor de teoria da história, José Carlos Reis, chamada “Teoria e História: Tempo Histórico, História do Pensamento Histórico Ocidental e Pensamento Brasileiro” de 2012, no último artigo intitulado “Comentário final: por um pensamento brasileiro”, algumas falas me chamaram bastante atenção. Reis neste artigo articula ideias sobre uma possível “identidade brasileira” e avança instrumentalizando o fato de que é necessário, a partir de nossos recursos, pensar e repensar as linguagens que produzem discursos sobre o Brasil.
Reis critica: “no Brasil, a ‘vida do espírito’ tem sido tão miserável quanto a vida material! Os estudos filosóficos são completamente ‘aculturados’ (dominados): os europeus não precisam de nós para comentar e compreender seus textos! […] O Brasil precisa de nossos recursos intelectuais, de nossas energias mentais, para se pensar, se conhecer, se avaliar, se resolver” (p. 266).
No restante do texto se desenvolve a crítica de que o pensamento brasileiro é assimilador demais das ideias, paradigmas, modelos, conceitos, instrumentos e procedimentos europeus. Somos aculturados. Pouco usamos nossos próprios paradigmas para elaborarmos nosso próprio pensamento. O Brasil é um enigma a ser decifrado a partir de nossa própria produção e reflexão com nosso próprio referencial que pode ser um Chico Buarque, um Lenine, um Arnaldo Antunes.
E virando a mesa, poucos são os europeus que dialogam com nosso texto, nossa própria produção. Não é usual sermos citados por lá. E diante desse quadro desanimador, colonizado, é com alegria que trago a boa nova deste livro. Escrito por François Hartog, um autor Francês famoso mundialmente na área de historiografia, o livro é um clássico sobre procedimento e análise historiográfica.
E nele encontro referências à obra “História da Consciência História Ocidental Contemporânea: Hegel, Nietzsche e Ricoeur”, livro recém lançado do próprio José Carlos Reis! Em minha opinião isso é animador, pois diante desse quadro terrível, me alegra saber que a obra de um tupiniquim, made in Brazil, está sendo lida nos altos círculos de intelectuais europeus, pois Hartog é professor na École des Hauts Études em Sciences Sociales, na França! Ele dialoga sobre os sentidos do conceito ricoeuriano de “representance” a partir da articulação de Reis. Como poderia um brasileiro se dá o luxo de tomar o espaço de um possível comentador francês? Ousadia de afro descendente!
Me alegra o espírito ver obras de autores brasileiros circulando nas mãos dos que quiseram dominar o mundo, estuprar o planeta, impor visões de mundo (“a verdade”) e agora se apropriam de um pensamento de gente “colonizada”, de terceiro mundo. Isso demonstra a complexidade e competência da obra e autor respectivamente.
Mas o leitor mais atento poderia replicar: “seu texto ainda segue a lógica do discurso colonizado, pois você vibra ao ver um brasileiro sendo citado lá fora!”. Seria uma crítica mordaz, se o meu propósito aqui fosse celebrar ingenuamente este aspecto. De fato vibro, mas não pelo mero fato de um branco europeu reconhecer a capacidade de um brasileiro, mas por isso representar que também temos o que dizer ao mundo, também podemos ser apropriados por eles, somos capazes. Como disse Hegel: “pensar a vida [a partir do Brasil], eis a tarefa”.
 

sábado, 29 de março de 2014

Resenha do livro: “Sexo na Bíblia: novas considerações” – J. Harold Ellens


Rafael Campos


Falta-se obras como esta no mercado editorial cristão nacional! Embora traduzido desde 2011, parece ainda não ter tido grande repercussão no Brasil. O autor do livro é teólogo reformado com 2 PhDs, autor de mais de 70 livros, professor de Psicologia, Filosofia e Teologia, e também pastor presbiteriano ordenado, o que o autoriza a discutir de maneira profunda e sensata sobre o sexo na bíblia.
Sexo na Bíblia é um tema amplo: pode-se discutir acerca de pedofilia, adultério, incesto, bestialidade, homossexualidade... E é o que Harold faz. Com quase toda certeza este livro será tido como “heresia” (palavra doce na boca de fundamentalistas), pois é ousado: descontrói muitas interpretações “clássicas” de várias passagens das escrituras e nos oferece um novo horizonte para se pensar o texto. A partir de argumentos muito persuasivos e logicamente sustentáveis outras visões que o texto sagrado suporta são trazidas à tona.
Harold quer outra leitura que não a do sexo como pecado e trilhar fora das rotas canônicas oficiais não é tarefa rasa. O pensamento ocidental cristão moralizado sexualmente a partir de Agostinho e São Jerônimo, trouxe um catastrófico erro de hermenêutica das escrituras acerca do sexo e da sexualidade. O autor deseja o alvorecer de outra leitura, conforme a bíblia, como um todo, conforme a nossa vida, experiência real que também revela verdades.
Fundamentalistas não vão gostar da obra: a leitura é dinâmica e ameaçadora. Numa sociedade patriarcal desde os tempos de Abraão, algumas afirmações soam estranhas: Deus deseja se comunicar conosco de alguma forma comparável à forma como nós desejamos ao outro sexualmente (p.59), pois fomos criados à sua imagem, cheio de amor e sexo! “Deus é nosso pai e nossa mãe” (p. 64).
Assustaria dizer que o padrão bíblico tanto velho, quanto novo testamentário é a poligamia? “A Bíblia de forma geral assumiu um contexto social no qual o casamento polígamo era a norma” (p.15). Segundo Ellens, a poligamia era benéfica e desejável para uma sociedade onde ela visava à proteção das mulheres da marginalidade, abandono, pobreza e prostituição. Era uma exigência da ordem social.
A temática da homossexualidade, em alta nos dias atuais, é discutida pormenorizadamente, e conclui-se que do ponto de vista da antiga aliança é impossível condenar a prática homossexual, pois os textos são altamente contextuais e não generalizações moralizantes e nem proibições atemporais. Do ponto de vista do novo testamento, as afirmações paulinas sobre o assunto também não seriam válida para condenar a prática. Dentre outros argumentos, Paulo não tinha conhecimento sobre a orientação homossexual de nascença, oferecido pelas ciências e saberes modernos. Embora eu não concorde com as colocações do autor no âmbito novo testamentário, é bastante difícil levantar contra argumentos. De qualquer maneira, isso soa como pimenta nos olhos de uma certa ala dita cristã (fundamentalista?).
Indico a leitura, pois o conhecimento revelado na obra porá em xeque interpretações errôneas, revolucionará nosso modo de ler a bíblia, abrirá novas pontes de diálogo e discussão sobre a temática, além do que nos proporcionará a fantástica aventura de ler as escrituras fora do cubículo oferecido por teólogos que, de modo geral, parecem ter medo do sexo.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Entre Memória e História



Josemir Camilo de Melo
P.H.D. em História

Tentando imitar a técnica zen-budista da educação, que é lançar um Koan – uma questão paradoxal, resolvi provocar alguns alunos com a seguinte proposta: (Até) Quando a historia deixa de ser verdade (de fato[s]) e passa a ser construção? Minha hipótese provisória é: até quando dura a existência da memoria humana (digo: dos viventes/descendentes).
Quem primeiro responde é um aluno de História da UEPB, Rafael Campos, um grande leitor de teoria da história, talvez discípulo de José Carlos Reis. Ele logo me retruca: Você está supondo o seguinte: que a historia já foi em algum momento verdade, e que depois, passa a ser "construção". Tento consertar meu raciocínio alegando que minha a discussão é meio genérica e parte de uma notícia da polêmica entre Ginzburg e pós-modernos a respeito de se o holocausto existiu ou não. Se ele foi (é) verdade? Parto do princípio que não li a polêmica ou a crítica do nosso historiador Durval Muniz. Por isto digo, de maneira genérica.
O aluno bota lenha na fogueira ao citar Collingwood, de que este disse que a historia existe e é possível sabermos alguma verdade (fatos) sobre ela, pois ela está na memória, portanto atemporal e objetiva, mesmo sabendo que temos problemas com a memória.
Confesso que tenho dificuldades em aceitar a ideia metafisica de “A História” (da humanidade), “A História me absolverá”, “A História dirá que tenho razão...” etc.. Essa ideia evolucionista como se todo o planeta e toda a ‘humanidade’ estivessem no mesmo patamar civilizatório. Outra palavrinha que descarto. O que é A História para os pigmeus da África Central, para os Koisan (do filme Os Deuses Devem estar loucos)? Faz 150 mil anos que eles estão aí, adaptados ao seu mundo. Não têm História? Graças a Deus (com escusas aos ateus!). Mas, voltemos.
A questão da História e da Memória. Volto a perguntar: e a questão do massacre dos Armênios pela Turquia? Caiu no esquecimento? Daqui a cem anos o holocausto dos judeus sob Hitler cairá no esquecimento, sairá da História? Parece que enquanto houver sobreviventes, certa memória falará da ‘verdade’ de um passado recente. No caso dos judeus na Alemanha, monumentos também falarão sobre a atrocidade. Mas quando o passado se tornar (ou é) remoto, qual o grau de veracidade dele? Outra pergunta pode ser anexada a esta: por que esta ilusão de buscar a ‘verdade’? Não seria a pessoa estar guindada pelo positivismo? Ou pelo Cristianismo?
Outro dia um jornal me perguntou sobre o massacre da Praça da Bandeira. O que eu tinha a dizer, já que não sou nem campinense, nem contemporâneo ao ‘fato’? Sugeri que o jornal buscasse pessoas contemporâneas àquele evento. Para mim e para toda geração posterior tal ‘fato’ se enquadraria em História, mas para os que lhe foram contemporâneos, será memória. Enterrado o último sobrevivente de um ‘fato’, daí por diante é História, é dúvida, é versão, é reflexão, mesmo que montada em Memória, é baixo grau de veracidade (?). O aluno então pergunta: só a Memória é crível? Ela também pode ser falha, pode ser artificializada. A crença é um discurso, uma forma discursiva de estar no mundo.